Gastronomia Molecular a ciência na cozinha!

Desmistificando o suflê e outros pratos

Executar receitas culinárias parece algo fácil. Basta seguir as instruções, passo a passo, e adicionar sal “a gosto”. Mas uma receita, um pouco mais complexa, sempre causa alguma dor de cabeça. Não sai como a foto no livro, não fica tão boa quanto a da vovó ou simplesmente não se parece com nada com que se esperava

 

“Isso porque, geralmente, os livros de receita estão errados. Não porque aqueles que escreveram as receitas queiram esconder algo, mas simplesmente uma parte crucial das instruções não foi escrita”, sentencia Kaká Silva, chef especializado em Gastronomia Molecular e sócio no Gastronomy Lab, empresa que dá cursos sobre o tem

 

A Gastronomia Molecular (ou simplesmente GM) não é Engenharia de Alimentos, apesar de compartilhar alguns conceitos. Um engenheiro alimentar é um especialista no processamento dos alimentos, muitas vezes em nível industrial, e que, de forma não incomum, gera inovações nesses processos. A GM trata de revelar a ciência nas receitas tradicionais, repassando cada detalhe, desmistificando os “segredos”. É como um engenheiro que resolveu ser arqueólogo (ou o inverso) e que passa a procurar o porquê do formato de uma espada ou de um elmo romano. Os elementos presentes nesse tipo de questão são amplos e não pontuais: passam por questões sociológicas e históricas ao mesmo tempo em que se consideram as questões da resistência de um determinado materia.

Os responsáveis pela GM não eram engenheiros, mas compartilhavam o gosto pelas ciências exatas: um físico e um químico. O primeiro era Nicholas Kurti, físico húngaro que participou do Projeto Manhattan (que levou ao desenvolvimento da bomba atômica norte-americana). O químico era Hervé This, francês e consequentemente conterrâneo de incontáveis chefs de cozinha que escreveram boa parte da história da gastronomia ocidental.

Ambos se conheceram em 1986 e juntos começaram a trocar impressões sobre uma série de experimentos envolvendo pratos culinários. “Meu primeiro contato com a Gastronomia Molecular foi… bom, quando eu a criei, com o Nicholas Kurti”, conta – de forma bem-humorada – Hervé This, que atualmente é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa em Agricultura, na França (INRA, na sigla original).

“Em março de 1986 eu comecei a investigar alguns mitos culinários que donas de casa idosas costumavam contar. Fiz isso no meu laboratório particular, que tenho desde os 6 anos de idade. Então, no mesmo ano, eu conheci Nicholas e começamos a trabalhar juntos, reproduzindo os experimentos tanto em Oxford – onde ele trabalhava – como em Paris (onde eu estava). O primeiro workshop sobre o tema – intitulado Gastronomia Física e Molecular – foi feito em 1988. A partir de 1992, essas reuniões se tornaram mais constantes. Quando Nic morreu, em 1998, a ‘física’ saiu do nome”, completa.

Entre esses mitos que This e Kurti puseram à prova estavam as dicas para o preparo de maionese: 1) mulheres menstruadas não deveriam preparar a maionese, pois a temperatura das mãos mudava e o prato poderia “desandar” e 2) nunca mude o sentido dos movimentos enquanto se mistura os ovos e o óleo.

A primeira dica, claro, é um mito. Mas os céticos de plantão fiquem atentos: a maionese realmente só deve ser mexida em um sentido sob pena da mistura desandar. Isso porque a maionese é uma emulsão e, portanto, são coloides do tipo líquido-líquido – gotinhas líquidas minúsculas suspensas em outro líquido mais denso. O creme desanda porque, ao inverter o sentido da mistura, fecha-se o pouco espaço em que as gotículas de óleo deveriam ficar suspensas e elas, ao ocupar espaços vazios na mistura, acabam por se chocar. A emulsão, consequentemente, se desfaz, ou então, se você preferir a explicação simplificada, desanda.

 

Ceticismo na cozinha

“Os livros de culinária franceses estão cheios desse tipo de recomendação – como o de que mulheres menstruadas não devem fazer maionese. Também pudera, uma grande parte deles foi escrita no século XVI. O que This fez foi testar essas receitas de uma forma cética, entendendo os procedimentos e ‘limpando’ esses excessos. Ele deixou de lado o cotidiano doméstico da cozinha e passou a tratar gastronomia de uma forma séria, no sentido de sistematizar essas receitas”, explica Enrique Rentería, professor de Design de Alimentos da PUC do Rio de Janeiro, autor do livro O Sabor Moderno: da Europa ao Rio de Janeiro na República Velha e presidente da Sociedade de Gastronomia Molecular com sede na capital carioca.

Não que a ciência não estivesse interessada nas tecnologias alimentares há muito tempo. “Pasteur, na França, desenvolveu pesquisas nessa área no século XIX e antes dele havia diversas outras pesquisas: sopa pronta é de meados desse mesmo século, e o caldo de carne do final dos anos 1800”, aponta Rentería.

A Gastronomia Molecular tem a ver com a compreensão do que ocorre com os alimentos quando se cozinha. Cozinhar é fazer química, e a cozinha é um laboratório bastante comum na maioria das casas. “Se você perguntar a um cientista como definir as transformações moleculares que ocorrem enquanto se cozinha, ele vai responder de uma maneira muito simples. Ciência é uma atividade que olha para os mecanismos de um determinado fenômeno, e cozinhar é algo que é cheio de diferentes fenômenos ocorrendo simultaneamente, da carne mudando de cor ao suflê crescendo. É preciso entender a química e a física que estão por trás desses fenômenos, ou seja, olhar com atenção para esses mecanismos”, diz Hervé.

“Mas não estamos falando em mecanização, como ocorre na indústria alimentícia. A GM é um método que auxilia na execução de um projeto de alimento, garantindo uma maior segurança no processo. A ideia é preparar o alimento com controle total do processo, não porque você sabe os truques, mas porque entende o fenômeno”, aponta Rentería.

“A GM partiu dos conhecimentos tradicionais da cozinha, os reformulou e avançou, ao passo que a culinária artesanal ficou tendo apenas a tradição como referência”, completa Kaká Silva. O chef aponta um exemplo disso: a proibição do uso de tachos de cobre para o preparo de doces no Brasil. “Do ponto de vista físico-químico, a tradição foi confirmada: um doce feito em panelas de aço inoxidável e em tachos de cobre são duas coisas diferentes. O produto final é diferente, pois os fenômenos envolvidos mudam”, explica.

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